CONTOS MAIS FAMOSOS

        Conto é uma história curta que cria um universo de personagens, acontecimentos, e até lugares fantasiosos, normalmente seguindo uma única trama e sem um desenvolvimento muito complexo.

     Missa do Galo - Machado de Assis

        Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

        A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

        Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

        Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.

        - Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

        - Leio, D. Inácia.

        Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.

        - Ainda não foi? Perguntou ela.

        - Não fui; parece que ainda não é meia-noite.

        - Que paciência!

        Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

        - Não! qual! Acordei por acordar.

        Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

        - Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

        - Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

        - Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.

        - Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

        - Justamente: é muito bonito.

        - Gosta de romances?

        - Gosto.

        - Já leu a Moreninha?

        - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

        - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

        Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

        - Talvez esteja aborrecida, pensei eu.

        E logo alto:

        - D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

        - Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

        - Já tenho feito isso.

        - Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

        - Que velha o quê, D. Conceição?

        Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.

        - É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

        - Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio...

        Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

        - Mais baixo! Mamãe pode acordar.

        E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

        - Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

        - Eu também sou assim.

        - O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.

        Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

        - Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.

        - Foi o que lhe aconteceu hoje.

        - Não, não, atalhou ela.

        Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:

        - Mais baixo, mais baixo...

        Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.

        - Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

        Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

        - São bonitos, disse eu.

        - Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

        - De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

        - Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

        A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

        Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

        - Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

        Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

        Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"

        - Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

        - Já serão horas? perguntei.

        - Naturalmente.

        - Missa do galo! repetiram de fora, batendo.

        -Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.

        E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

    O gato preto - Edgar Allan Poe

        Não espero nem peço que acreditem nesta história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotescos. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

        Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

        Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

        Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

        Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

        Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento -enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tornava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tornara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. O Gato Preto

        Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

        Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna -, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

        Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem.

        Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante, mesmo quando estamos no melhor de nosso juízo, para violar aquilo que é Lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. O Gato Preto

        Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

        Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

        Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muita pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela. As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal.

        Logo que vi tal aparição – pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa -, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça produzira a imagem tal qual eu agora a via. O Gato Preto

        Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

        Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto – e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo – e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

        Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

        Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse – detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tornando-se logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. O Gato Preto

        De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos – muito gradativamente -, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como fugisse de uma peste.

        Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um do olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

        No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo – apresso-me a confessá-lo -, pelo pavor extremo que o animal me despertava.

        Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso -, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi,e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… e, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, da qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

        Na verdade, naquele momento eu era um miserável – um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta-fera que se engendrara em mim, insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso – encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim – pousado eternamente sobre o meu coração!

        Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros – os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade – e, enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acesso de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca, convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

        Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

        Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi mantê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

        Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

        E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e, tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior, segurei-o nesta posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se poderia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.

        O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite – e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüilo e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

        Transcorreram o segundo e o terceiro dia- e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tornaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

        No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tornar duplamente evidente a minha inocência.

        – Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada -, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? -, estas paredes são de grande solidez.

        Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

        Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

        Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até a parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

    O afogado mais bonito do mundo - Gabriel Garcia Márquez

        Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras, nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaço, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.

         Tinham brincado com ele toda a tarde, enterran­do-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarme no povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e se disseram que talvez ti­vesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-­lhe nos ossos. Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo.

         Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto muito estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra, sem flores dispersas, no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava.

         Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens verificaram se não faltava ninguém nos povoados vizinhos, as mulheres ficaram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o Iodo com escovas de esparto, desembaraçaram-Ihe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de des­camar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado por entre labirintos de corais. Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos outros afoga­dos do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indi­gente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-Io tiveram consciência da classe de homem que era, e então ficaram sem respiração. Não só era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, senão que, em­bora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação.

         Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-Io, nem uma mesa bastante sólida para velá-Io. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então lhe fazer umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cre­tone de noiva, para que pudesse continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz, nem o Caribe estivera tão ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais en­tre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo, com seus homens, pen­sando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-Ios, no fundo dos seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. An­davam perdidas por esses labirintos de fantasia, quan­do a mais velha das mulheres, que por ser a mais ve­lha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou:

         – Tem cara de se chamar Estevão.

         Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, as calças, mal cortadas e pior costuradas, ficaram aper­tadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia-noite diminuíram os assovios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta-feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estevão. As mulheres que o vestiram, as que o pen­tearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem saber o que fazer com suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, en­quanto a dona da casa procurava a cadeira mais re­sistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estevão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasa­das de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aqueles que lhe diziam não se vá, Estevão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam lá se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com os seus homens, que se abriram as pri­meiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, con­solando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais Estevão, até que o choraram tanto que ficou sen­do o homem mais desvalido da Terra, o mais manso e o mais serviçal, o pobre Estevão. Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas.

         – Bendito seja Deus – suspiraram: – é nosso!

         Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos tor­nozelos uma âncora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram para perder tempo. Andavam como gali­nhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado, os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve, olhe que quase me fez cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinqui­Iharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se exaltar, desde quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das mu­lheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens per­deram a respiração.

         Era Estevão. Não foi preciso repeti-Io para que o reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estevão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe ca­biam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar a faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava envergonhado, de que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de ga­leão no pescoço e teria tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de pre­sunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais descon­fiados, os que achavam amargas as longas noites do mar, temendo que suas mulheres se cansassem de so­nhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais empedernidos, estremeceram até a me­dula com a sinceridade de Estevão

         Foi por isso que lhe fizeram o funeral mais esplêndido que se podia conceber para um afogado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizeram seus irmãos, tios e primos de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por ser pa­rentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância perderam a segurança do rumo, e se soube de um que se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se dispu­tavam o privilégio de levá-lo nos ombros, pelo de­clive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, dian­te do esplendor e da beleza do seu afogado. Jogaram­-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estevão pudesse an­dar por toda parte, sem bater nas traves, e que nin­guém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, por­que eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estevão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos ven­turosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfia­da de medalhas de guerra, e, apontando o promontó­rio de rosas no horizonte do Caribe, dissesse em ca­torze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estevão.

FIM

    Nenhum caminho para o paraíso - Charles Bukowski

        Eu estava sentado em um bar na avenida Western. Era perto da meia-noite e estava metido em uma das minhas habituais confusões. Quero dizer, você sabe, nada dá certo: as mulheres, os trabalhos, a falta de trabalhos, o tempo, os cães. Por fim, você simplesmente senta em uma espécie de estado de transe e espera como se estivesse no banco da parada de ônibus aguardando a morte.

        Bem, estava sentado lá e então chega essa mulher com cabelo preto e longo, bom corpo, olhos castanhos e tristes. Não me virei para olhá-la. Ignorei-a, mesmo ela tendo sentado no banco ao lado do meu, quando havia uma duzia de outros lugares vagos. Na verdade, éramos os únicos no bar, exceto pelo balconista. Ela pediu um vinho seco. Depois me perguntou o que eu estava bebendo.

        – Scotch com água.

        – Dê-lhe um scotch com água – ela disse ao balconista.

        Bem, isso era incomum.

        Abriu a bolsa, removeu uma pequena gaiola de arame e tirou algumas pessoas pequenas e as colocou no balcão. Tinham todos aproximadamente dez centimetros de altura e estavam vivos e bem vestidos. Havia quatro deles, dois homens e duas mulheres.

        – Fazem desses agora – ela disse. – São muito caros. Custaram quase dois mil dolores cada um quando comprei. Agora estão chegando aos 2.400 dólares. Não sei como são feitos, mas provavelmente é coisa fora da lei.

        As pessoas em miniatura estavam caminhando por cima do balcão. Repentinamente um dos pequenos homens deu um tapa na cara de uma das mulheres.

        – Sua vagabunda – ele disse – , já chega!!

        – Não George, você não pode – ela gritou -, eu te amo! Vou me matar! Tenho que ter você!

        – Não me importo! – disse o pequeno sujeito e puxou um cigarrinho e o acendeu. – Tenho direito de viver.

        – Se você não a quer – disse outro sujeitinho -, fico com ela, eu a amo.

        – Mas eu não quero você, Marty. Estou apaixonada pelo George.

        – Mas ele é um idiota, Anna, um idiota completo!

        – Eu sei, mas o amo de qualquer forma.

        O idiotinha caminhou pelo balcão e beijou a outra mulherzinha.

        – Estou com um triângulo amoroso em andamento – disse a mulher que havia me pagado uma bebida. – Esses são Marty e George e Anna e Ruthie. George vai se dar mal, muito mal. Marty é meio quadrado.

        – Não é triste ver tudo isso? Errr, qual o seu nome?

        – Dawn. É um nome terrivel. Mas é o que as mães fazem com suas crianças às vezes.

        – O meu é Hank. Mas não é triste…

        – Não, não é triste observar isso tudo. Não tive muita sorte com os meus próprios amores, péssima sorte, aliás…

        – Passa o mesmo com todos nós.

        – Parece que sim. De qualquer forma, comprei essas pessoinhas e agora fico olhando elas. E é como ter e não ter esses problemas. Mas fico muito excitada quando começam a fazer amor. É aí que fica dificil.

        – São excitantes?

        – Muito, muito excitantes. Meu Deus, me deixam louca!

        – Por que você não os obriga a fazer sexo? Quero dizer agora. Ficaremos olhando juntos.

        – Não se pode forçá-los. Têm de fazer por conta própria.

        – Com que frequencia acontece?

        – Oh, eles são bem bons. Quatro ou cinco vezes por semana.

        Estavam caminhando pelo balcão.

        – Escute – disse Marty -, me dê uma chance. Apenas uma chance, Anna.

        – Não – disse Anna. – Meu coração pertence ao George. Não pode ser de nenhuma outra maneira.

        George estava beijando Ruthie, apalpando seus peitos. Ruthie estava ficando excitada.

        – Ruthie está ficando excitada – Eu disse a Dawn.

        – Está, está mesmo.

        Eu também estava ficando. Agarrei Dawn e a beijei.

        – Escute – ela disse. – não gosto que eles façam sexo em público. Vou levá-los para casa e colocá-los para transar.

        – Mas aí não poderei olhar.

        – Bem, terá que vir comigo.

        – Tudo bem – respondi. – Vamos lá.

        Acabei minha bebida e saímos juntos. Ela carregava as criaturas em uma pequena gaiola de arame. Entramos no carro dela e colocamos o pessoal entre nós, no banco da frente. Olhei para Dawn. Era realmente jovem e bonita. Parecia ser boa também por dentro. Como podia ter fracassado com os homens? Há tantas maneiras de as coisas saírem erradas. Os quatro pequenos custaram-na oito mil. Tudo isso para se afastar de relacionamentos e na verdade não se afastar de relacionamentos.

        A casa era perto dos morros, um lugar com uma aparência agradavel. descemos do carro e caminhamos até a porta. Segurei a gaiola com os pequenos enquanto ela abria a porta.

        – Ouvi Randy Newman semana passada no The Troubador. – Ele não está ótimo? – perguntou.

        – Sim, é ótimo.

        Entramos na sala, e Dawn tirou os pequenos da gaiola e os colocou em uma mesinha. Então caminhou até a cozinha, abriu o refrigerador e pegou uma garrafa de vinho. Trouxe dois copos.

        – Perdão – ela disse. – Mas você parece um pouco louco. O que você faz?

        – Sou escritor.

        – E irá escrever sobre isso?

        – Ninguém jamais acreditará, mas vou.

        – Olha – disse dawn. – George tirou as calcinhas de Ruthie. Ele está enfiando os dedos nela. Gelo?

        – Sim, está fazendo isso. Não, sem gelo. Puro está ótimo.

        – Não sei o que acontece – disse Dawn -, mas fico realmente excitada quando os observo. Talvez seja porque são tão pequenos. Realmente me excita.

        – Entendo o que quer dizer.

        – Olhe, o George está chupando ela.

        – É mesmo.

        – Olhe pra eles!

        – Deus do céu!

        Agarrei Dawn. Ficamos ali em pé nos beijando. Enquanto isso, seus olhos iam dos meus para eles e novamente para os meus.

        O pequeno Marty e a pequena Anna também estavam olhando.

        – Olhe – disse Marty -, eles vão trepar. Nós bem que podíamos trepar também. Até os grandes vão transar. Olhe pra eles!

        – Você ouviu isso? – perguntei a Dawn. – Eles disseram que nós vamos trepar. É verdade?

        – Espero que sim – disse Dawn.

        Levei-a para o sofá e levantei o vestido acima da cintura. Beijei seu pescoço.

        – Eu te amo – eu disse.

        – Mesmo? Ama?

        – Sim, de alguma forma, sim…

        – Tudo bem – disse a pequena Anna ao pequeno Marty. – Também podemos trepar, mesmo que eu não ame você.

        Eles se abraçaram no meio da mesinha. Eu já tinha tirado a calcinha de Dawn. Ela gemia. Ruthie gemia. Marty se aproximava de Anna. Estava acontecendo por toda parte. Tive a idéia de que todas as pessoas do mundo estavam trepando. Então esqueci do resto do mundo. De alguma forma fomos para o quarto. Então penetrei Dawn para a longa e lenta cavalgada.

        Quando ela saiu do banheiro, eu estava lendo uma história muito idiota na Playboy.

        – Foi tão bom. – ela disse.

        – O prazer foi meu – respondi.

        Ela voltou para a cama. Pus a revista de lado.

        – Acha que daremos certo juntos? perguntou

        – O que quer dizer?

        – Acha que vamos conseguir ficar juntos por algum tempo?

        – Não sei. Coisas acontecem. O começo é sempre mais fácil.

        Então ouvimos um grito vindo da sala.

        – Ai, ai – ela disse.

        Saltou da cama e correu para a sala. Segui logo atrás. Quando cheguei lá, ela estava segurando George nas mãos.

        – Oh, meu Deus!

        – O que aconteceu?

        – Foi a Anna!

        – O que tem a Anna?

        – Cortou fora as bolas dele! George é um Eunuco!

        – Uau!

        – Pegue papel higiênico, rápido! Ele pode sangrar até morrer!

        – Esse filho da puta – disse Anna da mesinha -, se não posso ter George, ninguém terá.

        – Agora vocês duas são minhas! – disse Marty.

        – Não, agora você tem que escolher uma de nós – disse Anna.

        – Então, com qual vai ficar? – perguntou Ruthie.

        – Amo as duas – disse Marty.

        – Parou de sangrar – disse Dawn. – Ele está frio.

        Ela embrulhou George em um lenço e colocou sobre a borda da lareira.

        – Quero dizer – seguiu Dawn – que se você acha que não daremos certo, não vou insistir.

        – Acho que amo você, Dawn.

        – Olhe, – ela disse. – Marty está abraçando Ruthie!

        – Vão trepar?

        – Não sei. Parecem excitados.

        Dawn pegou Anna e a colocou na gaiola de arame.

        – Deixe-me sair daqui! Vou matar os dois! Deixe-me sair daqui!

        George tremeu de dentro do lenço sobre a borda. Marty ja tirara a calcinha de Ruthie. Puxei Dawn para perto de mim. Era bonita e jovem e boa por dentro. Eu podia estar apaixonado novamente. Era possível, nos beijamos. Megulhei fundo em seus olhos. Então emergi e comecei a correr. Eu sabia onde estava. Uma barata e uma águia faziam amor. O tempo era um idiota com um banjo na mão. Continuei correndo. Seu cabelo longo caía sobre meu rosto.

        – Vou matar todo mundo! gritava a pequena Anna.

        Agitava-se na gaiola de arame às três horas da manhã.

    Diga que não me matem - Juan Rulfo

        - Diga a eles que não me matem, Justino! Anda, vai dizer isso. Que por caridade. Diga a eles assim. Diga que o façam por caridade.

        - Não posso. Há ali um sargento que nem quer ouvir falar de ti.

        - Faz com que te ouça. Usa as tuas manhas e diga que para sustos já chega. Diga que o faça pela caridade de Deus.

        - Não se trata de sustos. Parece que te vão matar de verdade. Eu já não quero voltar lá.

        - Vai outra vez. Só mais uma vez, a ver o que consegues.

        - Não. Não tenho vontade de ir. É evidente que eu sou teu filho. E, se vou muitas vezes ter com eles, acabarão por saber quem sou e pode dar-lhes para me fuzilarem a mim também. É melhor deixar as coisas tal como estão.

        - Anda, Justino. Diz-lhes que tenham só um bocadinho de lástima de mim. Diga só isso.

        Justino apertou os dentes e moveu a cabeça, dizendo:

        - Não.

        E continuou a abanar a cabeça durante muito tempo

        - Diga ao sargento que te deixe ver o coronel. E conta-lhe quão velho estou. O pouco que valho. Que lucro terá por matar-me? Nenhum lucro. Ao fim e ao cabo ele deve ter uma alma. Diga que o faça pela bendita salvação da sua alma.

        Justino levantou-se do monte de pedras em que estava sentado e caminhou até à porta do curral. Depois voltou-se para dizer:

        - Vou, então. Mas se por acaso me fuzilam a mim também, quem cuidará da minha mulher e dos filhos?

        - A Providência, Justino. Ela se encarregará deles. Preocupa-te em ir lá e ver que coisas fazes por mim. Isso é que urge.

        Tinham-no trazido de madrugada. E agora já ia avançada a manhã e ele continuava ainda ali, amarrado a uma estaca, esperando. Não conseguia estar quieto. Tinha feito a tentativa de dormir um pouco para se apaziguar, mas o sono tinha abalado. Também tinha abalado a fome. Não tinha vontade de nada. Só de viver. Agora que sabia bastante bem que o iam matar, tinha-lhe entrado uma vontade tão grande de viver como só a pode sentir um recém-ressuscitado.

        Quem lhe haveria de dizer que havia de voltar àquele assunto tão velho, tão rançoso, tão enterrado como pensava que estava. Aquele assunto de quando teve que matar dom Lupe. Não foi sem mais nem menos, como lhe quiseram fazer crer os de Alima, mas sim porque teve as suas razões. Ele lembrava-se: Dom Lupe Terreros, o dono da Puerta de Piedra, ainda por cima seu compadre. Ao qual ele, Juvêncio Nava, teve que matar por isso mesmo; por ser o dono da Puerta de Piedra e porque, sendo também seu compadre, lhe negou o pasto para os seus animais.

        Primeiro aguentou-se por mero compromisso. Mas depois, quando da seca, em que viu como lhe morriam um atrás do outro os seus animais fustigados pela fome e que o seu compadre dom Lupe continuava a negar-lhe a erva dos seus pastos, foi então que se pôs a partir a cerca e a empurrar a massa de animais magros até ao capim para que se fartassem de comer. E o dom Lupe não tinha gostado disso, tanto que mandou tapar outra vez a cerca para que ele, Juvêncio Nava, lhe voltasse a abrir outra vez o buraco. Assim, de dia tapava-se o buraco e de noite voltava a abrir-se, enquanto o gado estava ali, sempre colado à cerca, sempre esperando; aquele seu gado que antes só vivia cheirando o pasto sem o poder provar.

        E ele e dom Lupe discutiam e voltavam a discutir sem chegarem a acordo.

        Até que uma vez dom Lupe lhe disse:

        - Olha, Juvêncio, outro animal mais que tu metes no pasto e eu mato.

        E ele respondeu:

        - Olhe, dom Lupe, eu não tenho a culpa que os animais procurem o seu conforto. Eles são inocentes. Você verá as consequências, se os matar. E matou-me um novilho.

        Isto aconteceu há trinta e cinco anos, em Março, porque em Abril eu já andava no monte, fugindo da precatória. De nada me serviram as dez vacas que dei ao juiz, nem a penhora da minha casa para lhe pagar a minha saída da prisão. Ainda depois se pagaram com o que restava, só para não me perseguirem, embora de toda a maneira me tenham perseguido. Por isso vim viver com o meu filho neste outro terrenozinho que eu tinha e que se chama Paio de Venado. E o meu filho cresceu e casou-se com a minha nora Ignacia e já teve oito filhos. Assim como assim a coisa já vai para velha, e por isso deveria estar esquecida. Mas, pelos vistos, não está.

        Eu então calculei que com uns cem pesos ficava tudo arrumado. O defunto dom Lupe era sozinho, vivia só com a mulher e os dois rapazinhos ainda de gatas. E a viúva depressa morreu também, dizem que de tristeza. E aos rapazinhos levaram-nos para longe, para casa de uns parentes. Assim que, pela parte deles, não havia que ter medo.

        Mas os demais insistiam em que eu andava com a precatórias em julgamento para me assustarem e continuarem a roubar-me. Cada vez que alguém chegava à aldeia avisavam-me:

        - Andam por aí uns forasteiros, Juvêncio.

        E eu fugia para o monte, emaranhando-me entre os medronheiros e passando os dias a comer só beldroegas. Às vezes tinha que sair à meia-noite, como se me estivessem perseguindo os cães. Isso durou a vida toda. Não foi um ano nem dois. Foi a vida toda.

        E agora tinham ido à sua procura, quando já não esperava ninguém, confiado no esquecimento em que as pessoas o tinham; acreditando que pelo menos os seus últimos dias os passaria tranquilo. «Pelo menos isto» pensou «conseguirei com estar velho. Deixar-me-ão em paz.»

        Tinha-se entregado a esta esperança por inteiro. Era por isso que lhe custava trabalho imaginar que ia morrer assim de repente, nesta altura da sua vida, depois de tanto lutar para se livrar da morte; de ter passado o seu melhor tempo andando de um lado para o outro arrastado pelos sobressaltos e quando o seu corpo tinha acabado por ser um simples couro duro, curtido pelos maus dias em que teve que andar a esconder-se de todos.

        Não tinha ele, por acaso, deixado até que a mulher lhe abalasse? Naquele dia que amanheceu com a novidade de que a mulher se tinha ido embora, nem sequer lhe passou pela cabeça a intenção de sair a procurá-la. Deixou que abalasse sem perguntar nem com quem nem para onde, para não ter de descer à aldeia. Deixou que se fosse como se lhe tinha ido tudo o resto, sem mexer uma palha. A única coisa que lhe restava para cuidar era a vida, e esta conservá-la-ia fosse como fosse. Não podia deixar que o matassem. Não podia. Muito menos agora. Mas para isso o tinham trazido de lá, de Paio de Venado. Não precisaram de amarrá-lo para que os seguisse. Ele andou sozinho, unicamente manietado pelo medo. Eles deram-se conta de que ele não podia correr com aquele corpo velho, com aquelas pernas fracas como cordas secas, inteiriçadas, com o medo de morrer. Porque ia para isso. Para morrer, disseram.

        Soube desde então. Começou a sentir essa comichão no estômago, que lhe chegava de repente sempre que via a morte de perto e que lhe puxava a ânsia pelos olhos, e que lhe inchava a boca com aqueles goles de água azeda que tinha que engolir sem querer. E essa coisa que lhe fazia os pés pesados enquanto a cabeça lhe amolecia e o coração lhe batia com todas as suas forças nas costelas. Não, não se podia acostumar à ideia que o matassem.

        Tinha que haver alguma esperança. Em algum lugar poderia ainda restar alguma esperança. Talvez eles se tivessem enganado. Talvez procurassem outro Juvêncio Nava e não o Juvêncio Nava que ele era.

        Caminhou entre aqueles homens em silêncio, de braços caídos. A madrugada era escura, sem estrelas. O vento soprava devagar, levava consigo a terra seca e trazia mais, cheio desse cheiro como de urina que tem o pó dos caminhos.

        Os seus olhos, que com os anos se tinham encarquilhado, vinham vendo a terra, aqui, debaixo dos seus pés, apesar da escuridão. Ali na terra estava toda a sua vida. Sessenta anos a viver dela, contendo-a entre as suas mãos, depois de a ter provado como se prova o sabor da carne. Veio durante longo tempo esmiuçando-a com os olhos, saboreando cada pedaço como se fosse o último, quase sabendo que seria o último.

        Depois, como querendo dizer alguma coisa, olhava os homens que iam junto dele. Ia dizer-lhes que o soltassem, que o deixassem abalar: «Eu não fiz mal a ninguém, rapazes», ia dizer-lhes, mas ficava calado. «Mais adiante digo-lhes», pensava. E só os olhava. Podia até imaginar que eram seus amigos; mas não o queria fazer. Não eram. Não sabia quem eram. Via-os a seu lado inclinando-se e agachando-se de vez em quando para ver por onde seguia o caminho.

        Tinha-os visto pela primeira vez ao empardecer da tarde, nessa hora desbotada em que tudo parece chamuscado. Tinham atravessado os sulcos pisando o milho tenro. E ele tinha descido para isso: para lhes dizer que ali estava a começar a crescer o milho. Mas eles não se detiveram.

        Tinha-os visto bastante tempo. Sempre teve a sorte de ver tudo com bastante tempo. Podia ter-se escondido, caminhar umas quantas horas pelo cerro enquanto eles não abalavam e depois voltar a descer. Ao fim e ao cabo, o milho não cresceria de maneira nenhuma. Já era tempo de terem chegado as águas e as águas não apareciam e o milho começava a murchar. Não tardaria em estar completamente seco.

        Assim nem merecia a pena ter descido; ter-se metido entre aqueles homens como num buraco, para já não voltar a sair.

        E agora continuava junto deles, aguentando a vontade de lhes dizer que o soltassem. Não lhes via a cara; só via os vultos que se juntavam ou se separavam dele. De tal maneira que, quando se pôs a falar, não soube se o tinham ouvido. Disse:

        - Eu nunca fiz mal a ninguém - disse isso. Mas nada mudou. Nenhum dos vultos pareceu aperceber-se. As caras não se viraram para o ver. Continuaram na mesma, como se tivessem vindo a dormir.

        Então pensou que não tinha mais nada para dizer, que teria de procurar a esperança em qualquer outro lugar. Deixou cair outra vez os braços e entrou nas primeiras casas da aldeia no meio daqueles quatro homens escurecidos pelo negro calor da noite.

        - Meu coronel, aqui está o homem.

        Tinham parado à frente da ombreira da porta. Ele, com o seu chapéu na mão, por respeito, esperando ver sair alguém. Mas só saiu a voz:

        - Qual homem? - perguntaram.

        - O de Paio de Venado, meu coronel. O que o senhor nos mandou buscar.

        - Pergunta-lhe se alguma vez viveu em Alima - voltou a dizer a voz de lá de dentro.

        - Eh, tu! O coronel pergunta se habitaste em Alima? repetiu o sargento que estava à frente dele. .

        - Sim. Diga ao coronel que sou mesmo de lá. E que lá vivi até há pouco tempo.

        - Pergunta-lhe se conheceu Guadalupe Terreros.

        - Está a perguntar se conheceste Guadalupe Terreros.

        - Ao dom Lupe? Sim. Diga que sim que o conheci. Já morreu.

        Então a voz lá de dentro mudou de tom:

        - Já sei que morreu - disse. E continuou a falar como se conversasse com alguém, do outro lado da parede de carriços:

        - Guadalupe Terreros era meu pai. Quando cresci e o procurei disseram-me que estava morto. É um bocado difícil crescer sabendo que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar raízes está morta. Conosco, aconteceu isso. Depois soube que o tinham matado à machadada, cravando-lhe depois uma vara de ferrão no estômago. Contaram-me que ele sobreviveu mais de dois dias perdido e que, quando o encontraram, atirado num arroio, ainda estava agonizando e pedindo que se encarregassem de lhe cuidar da família. Isto, com o tempo, parece que se esquece. Uma pessoa tenta esquecer. Aquilo que não se esquece é chegar a saber que quem fez aquilo ainda está vivo, alimentando a sua alma podre com a ilusão da vida eterna. Não poderia perdoar-lhe, embora não o conheça; mas o facto de se ter posto no lugar onde eu sei que está, dá-me ânimo para acabar com ele. Não lhe posso perdoar que continue a viver. Não devia ter nascido nunca.

        Daqui, de cá de fora, ouviu-se claramente tudo o que disse. Depois ordenou:

        - Levem-no e amarrem-no um bocado, para que padeça, e depois fuzilem-no!

        - Olha para mim, coronel! - pediu ele. - Já não valho nada. Não tardarei em morrer sozinho, derreado de velho. Não me mates!

        - Levem-no! - voltou a dizer a voz lá de dentro.

        - ... Já paguei, coronel. Paguei muitas vezes. Tiraram-me tudo. Castigaram-me de muitas formas. Passei coisa de quarenta anos escondido como um pestilento, sempre com o palpite de que a qualquer momento me matariam. Não mereço morrer assim, coronel. Deixa que, pelo menos, o Senhor me perdoe. Não me mates! Diga que não me matem!

        Estava ali, como se lhe tivessem batido, sacudindo o seu chapéu contra a terra. Gritando.

        De seguida a voz lá de dentro disse:

        - Amarrem-no e dêem-lhe alguma coisa para beber até que se embebede para não lhe doerem os tiros.

        Agora, por fim, tinha-se apaziguado. Estava ali encostado ao pé da estaca. Tinha vindo o seu filho Justino e o seu filho Justino tinha abalado e tinha voltado e agora vinha outra vez.

        Pô-lo em cima do burro. Amarrou-o bem amarrado aos arreios para que não caísse pelo caminho. Meteu-lhe a cabeça dentro de um saco para que não desse má impressão. E depois deu um puxão na crina do burro e abalaram, lançados, depressa, para chegar a Paio de Venado ainda com tempo para organizar o velório do defunto.

        - A tua nora e os teus netos vão ter saudades tuas - ia dizendo. - Olhar-te-ão na cara e pensarão que não és tu. Vai parecer-lhes que foi o coiote que te comeu, quando te virem com essa cara tão cheia de buracos por causa de tanto tiro de misericórdia que te deram.

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